O artesão e o analista

A atenção flutuante é condição do trabalho do analista. Ao proporcionar a escuta da subjetividade, o analista se aproxima do artesão, em seu ofício de produzir algo sob medida.

PSICANALISTAARTESÃO

Marcia Henrique do Nascimento

9/3/20253 min ler

Haverá paradeiro para o nosso desejo
Dentro ou fora de um vício
Uns preferem dinheiro
Outros querem um passeio perto do precipício

Haverá paraíso
Sem perder o juízo e sem morrer
Haverá para-raio
Para o nosso desmaio
Num momento preciso

Uns vão de para-quedas
Outros juntam moedas antes do prejuízo
Num momento propício
Haverá paradeiro para isso?

("Paradeiro", composição de Antônio Freitas, Arnaldo Antunes e Marisa Monte)

A psicanálise ocupa um lugar no imaginário e na cultura popular. Freud, por exemplo, percorreu um arco narrativo e involuntariamente foi transformado em uma espécie de ícone da cultura pop, tal qual as latas de sopa Campbell’s de Andy Warhol: sua face está estampada em camisetas, canecas e pôsters, enquanto os conceitos psicanalíticos foram sendo, aos poucos, diluídos e popularizados – o "Freud explica" é um claro exemplar desse fenômeno.

Na esteira dessa popularidade, os analistas foram sendo retratados em obras de ficção, sejam literárias ou audiovisuais, como figuras enigmáticas, misteriosas, monossilábicas ou até mesmo desprovidas de paciência. Já no dicionário Aurélio somos "especialistas em Psicanálise", enquanto no maravilhoso “Dicionário analógico da Língua Portuguesa”, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo - truque de Chico Buarque – a palavra está ali acomodada entre “psiquiatra” e “alienista”, junto a outras tantas que remetem a um profundo domínio do saber.

Em “Construções na análise” (1937), Freud esboçou a proximidade entre o fazer do analista e do arqueólogo: dentre outras conclusões, aponta que ambos possuem “o direito inquestionável de reconstruir pela complementação e pela integração dos restos conservados”. A diferença está justamente no fato de que o arqueólogo lida com objetos destruídos, buscando recontar a História, enquanto o analista lida com o objeto psíquico, procurando com isso levantar a pré-história do paciente.

Outra analogia possível sobre nosso trabalho é sua comparação com o trabalho dos artesãos, em seu caráter da produção única, sob medida, personalizada. Somos como um luthier às avessas (mistura de físico, marceneiro e músico), em seu trabalho de burilar a madeira, senti-la, observar a direção dos veios, produzir a caixa de ressonância dos instrumentos de corda e finalmente, o instrumento em si.

Também o ato de tecer a renda, movimentando rapidamente os dedos para entrelaçar os fios de algodão, seja em bilros, agulhas ou nós, exige das rendeiras habilidade artesanal e técnica. Isso é um ofício. Ainda que movimentos específicos sejam necessários para produzir desenhos ou esperados padrões, o resultado nunca será o mesmo, pois de alguma maneira a subjetividade está ali presente, de modo invisível, no tear. Isso é a metáfora da clínica psicanalítica.

Essa metáfora poética faz parecer tão fácil, mas duvidar faz parte do processo. A dúvida recai até mesmo sobre sua eficácia. Porém como a renda, a análise é resultado da técnica e da forja do tempo, entre outros componentes que atravessam sua confecção. Um fio de algodão sozinho é só um fio. É necessário que seja torcido, movimentado, entrelaçado para que componha um desenho rendado. Se fosse sujeito dotado de linguagem, talvez pudesse dizer que o entremeio causa dor.

Falar de si mesmo é um ato que contrapõe dureza e coragem, acrescentando o elemento de que, ao se escutar, o sujeito coloca-se à prova. Por vezes, certezas que o acompanha por uma vida cai por terra. A dúvida reside na análise, assim como no movimento das mãos das rendeira, na arte do luthier. Pensar se o fio irá aguentar suficientemente a tensão do trançado e então vê-lo se romper. Será possível a emenda ou só resta desfazer os pontos e recomeçar? Se foi acertada a escolha dos tons e combinações de cores. Hesitar se escolheu a melhor madeira para fazer ressoar as notas, se fez o melhor conserto possível, o mais fino ajuste.

Mas a esperança é a resposta ao medo e dali sairá o instrumento com o qual o paciente poderá compor suas próprias canções e enfim apresentá-las ao mundo. Do tear da clínica sairá a renda que, ao fim, será a roupa que o paciente usará na vida, ao longo dos rigorosos invernos e luminosos verões. Essa é a beleza da psicanálise. Esse é o ofício do analista.

AZEVEDO, F. F. S. Dicionário analógico da Língua Portuguesa: ideias afins. São Paulo: Lexikon Editora, 2019.

FERREIRA, A. B. H. Dicionário Aurélio. [S. l.], [s. d.]. Disponível em: https://www.dicio.com.br/aurelio-2/. Acesso em: 30 de janeiro de 2025.

FREUD, S. Construções em Análise. In: ______. Moisés e o Monoteísmo, Compêndio de Psicanálise e Outros Textos (1937-1939). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. v. 19, p. 189-199.Escreva seu texto aqui...