Enquanto observo o senhor tempo

Um analista circula pela vida, observando as belezas e tragédias cotidianas, tentando encontrar o magnífico no comum. A clínica psicanalítica é uma extensão da vida.

TEMPOCOMUM

Marcia Henrique do Nascimento

11/3/20252 min ler

Com a roupa encharcada e alma repleta de chão,

Todo artista tem de ir aonde o povo está.

Se foi assim, assim será,

Cantando me disfarço e não me canso de viver

Nem de cantar.

("Nos bailes da vida", composição de Fernando Brant e Milton Nascimento )

No famoso texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (1953), também conhecido como “Discurso de Roma”, Lacan aponta sobre o caráter fundamental da linguagem para a psicanálise, colocando-a no centro do processo analítico. Essa perspectiva foi revolucionária, pois deslocou o analista do lugar de mero tradutor do inconsciente e o instigou a debruçar-se sobre a linguagem que emerge não somente das falas, mas dos silêncios, gestos, sonhos.

Nessa concepção, o analista deveria agir como um observador de seu tempo, sendo capaz não somente de escutar seu paciente, mas sobretudo de observar e refletir sobre os novos modos de pensar que irrompem, de estar atento às transformações da cultura e às ideias que circulam. O analista deve ser capaz de analisar o discurso do seu tempo.

Além do tripé de formação (estudo teórico – análise pessoal – supervisão), a proposição de Lacan tornou indispensável que o analista circule, socialize, observe - não somente entre colegas do círculo de analistas, mas que esteja atento à escuta das contradições e incongruências próprias da vida, morada dos chistes, atos falhos, neuroses, contradições e infinitas repetições, o sem fim de mazelas e misérias humanas: aquelas trazidas pela vivência dos outros e sobretudo, suas próprias.

A psicanálise não explica tudo, mas o exercício é encontrar o extraordinário no absolutamente comum. Ir à feira, sentir o cheiro das verduras úmidas, chorar com desenhos infantis, ver a bateria da escola de samba passar na avenida, cantar a plenos pulmões sua música favorita sem se importar se desafina, contemplar o horizonte, conversar com desconhecidos na fila da lotérica. Tomar banho de chuva, sentir a terra com os pés descalços.

Analistas choram, riem, sofrem, recebem diagnósticos difíceis que exigem longos tratamentos médicos. Abraçam seus amores. Habitamos o mundo dos mortais, como humanos que somos. Não estamos no Panteão dos Deuses. Ser perfeito deve ser chato: não cabe incongruência, falta, lágrima. Bonito mesmo é ter a incompletude.

LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 100-165.